Até o fim do século 19, acreditava-se que o jogo de xadrez havia surgido na região da antiga Pérsia. Entretanto, no início do século 20, duas publicações contribuíram para mudar esta concepção.
Em 1902, o oficial inglês H. Raverty escreveu um artigo no Jornal da Sociedade Real Asiática de Bengala, intitulado a "História do Xadrez e do Gamão". De acordo com lingüista Sam Sloam (1985) [1], pela primeira vez contou-se a seguinte história: um sábio chamado Sissa, de uma região do noroeste da Índia, inventou um jogo que representava uma guerra e pediu como recompensa ao rei um grão de trigo para a primeira casa do tabuleiro, dois para a segunda, quatro para a terceira, sempre dobrando a quantidade da casa anterior. Essa famosa história foi inúmeras vezes recontada e acabou tornando-se a lenda mais conhecida sobre a origem do xadrez.
Em 1913, Harold James Ruthven Murray publicou o livro “Uma História do Xadrez”. Nesta obra, o autor declara de forma convincente em mais de 900 páginas que o xadrez foi inventado na Índia, em 570 d.c.. Este xadrez indiano chamava-se chaturanga e seria anterior ao xadrez persa (chatrang), ao xadrez árabe (shatranj), ao xadrez chinês (xiangqi), ao xadrez japonês (shogi) e a todos os xadrezes. A pesquisa do autor tornou-se uma referência na literatura enxadrística e foi reproduzida exaustivamente [2].
Todos nós acreditamos na versão de Murray. Afinal, o chaturanga era a origem mais provável. Porém, esta teoria foi ficando cada vez mais difícil de sustentar com novas descobertas arqueológicas e com uma análise mais minuciosa das fontes do autor. Na busca de referências para trabalhos científicos, o xadrez indiano a quatro mãos passou a ser citado como uma variante mal-sucedida de um outro jogo ainda mais antigo [3].
De acordo com Yuri Averbakh (1999) [4], a origem do xadrez não pode ser analisada sem o conhecimento adequado da origem de outros jogos de tabuleiros. Por exemplo: egípcios e gregos tiveram os seus jogos de tabuleiros que simulavam corridas. Asthapada era o nome de um antigo jogo de corrida indiano que, assim como o chaturanga, era jogado por quatro pessoas, com dados, em um tabuleiro de 64 casas. A idéia de um xadrez inicial somente com carros de combate é realmente incrível.
Mas, apesar de Jean-Louis Cazaux (2001) [5] e Myron Samsin (2002) [6] proporem o xadrez como um jogo híbrido, o registro da existência de vários jogos de tabuleiros (8×8), em regiões e épocas distintas, com peças representando uma hierarquia e com o mesmo objetivo de deixar a peça principal sem movimento é uma evidência que estes jogos tiveram uma origem comum.
O período árabe do xadrez, cujo nome shatranj permanece até os dias atuais, parece ser o único ponto de convergência entre os antigos e atuais pesquisadores. Ele foi realmente o responsável pela propagação rápida do jogo que acompanhou a cultura mulçumana na expansão do islamismo. Até 1475, o xadrez que jogava-se na Europa era resultado direto desta influência. O grande enigma diz respeito ao seu período ainda mais remoto. Se realmente há registros na literatura antiga persa e chinesa anteriores ao século seis da nossa era sobre um jogo de tabuleiro similar ao xadrez, podemos considerar as seguintes hipóteses formuladas por Cazaux (2001) [7]:
1 – O xadrez nasceu na Pérsia;
2 – O xadrez nasceu na China;
3 – O xadrez persa e chinês têm o mesmo ancestral;
4 – O xadrez persa e o xadrez chinês influenciaram-se mutuamente na sua formação.
Há referências [8] que, ao menos 700 anos antes da era cristã, jogava-se na China um jogo de tabuleiro com pedras que simulava uma guerra. O número de peças podia chegar exatamente a 32 peças. Este jogo tinha o nome de Liubo e é considerado o ancestral do xiangqi, o xadrez chinês.
O jogo do elefante [9] já era jogado na China no século II d.c.. Os movimentos das peças que iniciam nas bordas do tabuleiro, equivalentes à torre, cavalo e bispo [10] do xadrez moderno, são praticamente os mesmos do xadrez chinês. Há também um rei no centro. O que muda é o número de peões: apenas cinco no xiangqi, contra oito do modelo ocidental. Esta mudança é compensada em número de peças por dois conselheiros e dois canhões, somando em ambos os jogos 32 peças.
O tabuleiro chinês é no formato 9×10. Como as peças não são colocadas nas casas e sim nos pontos que separam as casas, a transposição para xadrez moderno equivaleria a um tabuleiro 8×9. Há ainda no xadrez chinês um rio que separa os dois lados como uma fronteira artificial. Se o rio fosse eliminado teríamos o mesmo tabuleiro de 64 casas (8×8). Sloam (1985), em seu artigo “A origem do xadrez” [11], é enfático quando comenta a convenção dos pontos, originária de um outro jogo de tabuleiro, o go:
“…quando o xadrez foi da China para a Índia, era jogado num tabuleiro de go de 9×9. Quando os indianos (ou persas ou árabes, quais tenham vindo primeiro), que não sabiam nada de go, viram aquilo, eles simples e naturalmente tiraram as peças dos pontos e puseram nas casas. Assim, um tabuleiro de go de 9×9 tornou-se um tabuleiro de xadrez de 8×8. Contudo, havia ali uma peça a mais, então os indianos simplesmente eliminaram um dos chanceleres. Também acrescentaram três peões, para preencher o espaço vazio em frente. (O xadrez chinês agora só tem cinco peões, mas pode ter tido mais em versões mais antigas do jogo). Dessa forma, é possível que eles tenham convertido o xadrez chinês em xadrez indiano de um só golpe…”
Embora não existam evidências que comprovem todos os argumentos daqueles que hoje acreditam na segunda hipótese, é um fato os registros de um jogo anterior ao chaturanga e ao chatrang em pelo menos três séculos. O xiangqi teria a possibilidade de ter se propagado em outras regiões sujeitas à influência chinesa com as rotas comerciais da seda. As peças de xadrez mais antigas já descobertas foram encontradas nestes caminhos.
Neste xadrez de tantas possibilidades, permitiu-se ainda que em julho de 2002 fosse encontrada durante as escavações de um palácio bizantino, no sul da Albânia, uma peça de marfim que seria do ano 465 d.c. [12] (portanto, anterior ao chaturanga). Seria a mais antiga peça já encontrada na Europa, mas há quem acredite não ser uma peça de xadrez e sim apenas uma pequena estatueta decorativa. Antes desta descoberta, peças italianas feitas de osso, datadas do séc. X, em exposição no Museu Arqueológico de Nápoli, pareciam confirmar que o xadrez indiano, persa ou chinês havia demorado mais séculos antes de entrar na Europa medieval.
Notas:
1 – SLOAM, Sam. The Origin of Chess. 1985. Disponível em:< http://www.samsloan.com/origin.htm>. Acesso em: 29 ago 2002
2 – Embora o autor tenha este e outros livros reimpressos nas décadas de 50 e 60, suas pesquisas encerram-se em 1917.
3 – SLOAM, Sam. Op. Cit.
4 – AVERBAKH, Yuri. To the Question of the Origin of Chess. 1999. Disponível em: < www.netcologne.de/~nc-jostenge/ averba.htm>. Acesso em: 29 ago 2002
5 – CAZAUX, Jean-Louis. Is Chess a hybrid game?. 2001. Disponível em: < www.netcologne.de/~nc-jostenge/cazaux.htm>. Acesso em: 29 ago 2002
6 – SAMSIN, Myron J. Pawns and Pieces – Towards the Prehistory of Chess. 2002. Disponível em: < www.netcologne.de/~nc-jostenge/samsin.htm>. Acesso em: 29 ago 2002
7 – CAZAUX, Jean-Louis. Op. Cit.
8 – FLEISCHER, R. e ULLAH KHAN, S. Xiangqi and Combinatorial Game Theory. 2002.
Fonte: Ajax Clube
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