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32- SUA MAJESTADE, O ERRO!

Atribuída a Sêneca, a clássica assertiva de que "o erro é inerente à natureza humana", implica em dizer que até os superdotados são passíveis de incidir nos mais diversos equívocos. Nem mesmo o Papa, com toda a sua onisciência, é infalível e imune a esse fato inexorável, a não ser quando se trata de dogma da Igreja.

Espelho da vida, a prática enxadrística reflete amiúde essa situação e o espirituoso Saviely Tartakover costumava afirmar: "numa partida de xadrez, vence aquele que comete o penúltimo engano".

O extraordinário Miguel Tal, ao comentar as alternativas de seu primeiro duelo com Botvinnik pelo título mundial, esgotou o assunto com a seguinte judiciosa apreciação: "Muitos comentaristas são de opinião que as melhores partidas são aquelas onde um ou ambos os jogadores atuam de modo conseqüente do princípio ao fim. Em tais partidas é fácil perceber um esquema de seu conjunto, indicar os momentos cruciais, podendo-se então prescindir de dúvidas, coisa não pouco importante, especialmente quando se comentam as próprias partidas. Nas competições dos últimos anos, porém, as partidas desse tipo são cada vez mais raras. Por acaso se joga pior? De modo algum. O caso é que sendo os contendores de alto nível, senhores dos modernos conceitos do xadrez, poucas vezes se consegue realizar sem tropeços o plano traçado. O caminho que se segue não é uniforme e está repleto de depressões, abundando os perigosos socavões. A luta em tais partidas costuma ser muito interessante, pois, ainda que no seu desenrolar ocorram erros, teremos também muito mais idéias, planos e combinações!"

Assim, entre os ingredientes de uma partida magistral, ao lado de inspirados planos e brilhantes combinações, aparecem os impactos e emoções dos contendores, traduzidos com freqüência em equívocos das mais variadas espécies.

A partida comentada a seguir, tão logo passou a ser conhecida, foi saudada de forma bastante eloqüente, suscitando os mais entusiásticos aplausos. Passada a euforia dos primeiros instantes, começaram a ser detectadas falhas e imprecisões, provocando divergências entre os aficionados sobre o valor de seu conteúdo e pondo em xeque a exagerada conceituação de alguns apressados comentaristas ao considerá-la "a partida do século!"

Longe de aceitar esses excessos, tanto elogiosos como críticos, achamos que antes de diminuir os méritos deste cotejo, os enganos havidos evidenciaram que uma partida de torneio ainda continua sendo produto da mente humana, a qual, por mais privilegiada que seja, tem limitações e deixa-se envolver pela tensão nervosa do combate, culminando às vezes em falsas conclusões.

TORNEIO SUPER MAGISTRAL - Novgorod, 1994.GARRY KASPAROV x VLADIMIR KRAMNIK – PR – Defesa Siciliana, ECO B33

1 e4 c5 2 Cc3 Cc6 3 Cge2 Cf6 4 d4 cxd4 5 Cxd4 e5
A linha de jogo decorrente deste avanço tem três patronos: o alemão Emanuel Lásker, que lhe deu notoriedade; o tcheco Jiri Pelikán, que promoveu seu renascimento; e o russo Eugênio Sveshnikov, responsável por sua atual popularidade. Cada um desses três mosqueteiros prestou um inestimável trabalho na transformação dessa variante numa atraente arma de combate.
Qual deve ser então o seu nome? Isto é uma questão bizantina, de pouca monta. O essencial é conhecer seus fundamentos e detalhes técnicos. Quanto à sua denominação, a resposta já foi dada há muito pelo extraordinário William Shakespeare: "Que é um nome? Se outro nome tivesse a rosa, em vez de rosa, deixaria de ser por isso perfumosa?".

6 Cdb5 d6 7 Bg5 a6 8 Ca3 b5 9 Cd5 Be7 10 Bxf6 Bxf6 11 c3 O-O 12 Cc2 Tb8 13 h4!
Embora pouco freqüente, esta jogada tem antecedentes na prática magistral e, na popular publicação iugoslava "Encyclopaedia of Chess 0penings", tomo B, edição de 1984, já figuram algumas partidas dentro do mesmo roteiro. A intenção é óbvia: realizar um ataque imediato na ala do Rei, pois 13 ... Bxh4? 14 Dh5 g5 15 g3, seria desastroso para as Pretas.

13 ... Ce7 14 Cxf6+
Até aqui, a trilha desta partida seguia os principais passos do duelo anterior entre esses mesmos jogadores no Torneio da PCA, em Moscou, abril de 1994. Com referência ao lance do texto, o próprio Kaspárov declara: "Em nossa partida rápida em Moscou, eu me contive e deixei de capturar em f6. Desta feita, porém, decidi escolher o caminho mais natural. Pode parecer estranho, mas, na " Variante Sveshnikov ", é uma prática comum as atenções se voltarem para o controle da casa d5, não se dando a mínima importância ao seu aspecto estratégico - mesmo se isto significa não destruir o corte de cabelo do Rei adversário. Por causa disto, este lance deve ser considerado urna novidade ".

14 ... gxf6 15 Dd2 Bb7
Posteriormente, na partida Feher x Priehoda, Campeonato Húngaro por Equipes, 1994, as Pretas optaram por 15 ... Be6, com o seguinte desenlace: 16 0-0-0 Cc6 17 Dh6 Rh8 18 h5 Bxa2? (Exato era 18 ... b4 19 c4 b3, com contrachances) 19 Th3! Tg8 20 Thd3 b4 21 Txd6 bxc3 22 b4 Ca5! 23 Bc4!! De7 24 Bxa2, abandonam.

16 Bd3 d5 17 exd5 Dxd5 18 O-O-O!
Uma concepção deveras engenhosa: o Rei de Kaspárov se refugia numa área de turbulência e provoca o ânimo belicoso de Kramnik, no sentido de penetrar nesse setor, mediante a eliminação de uma das sentinelas da casamata das Brancas. A razão dessa ousada estratégia é atrair a Dama preta para uma ilusória posição de ataque, enquanto que a sua rival se lançará com todo o ímpeto para o reduto inimigo - muito mais vulnerável e comprometido.

18 ... e4 19 Be2 Dxa2?!
Em apreciação a respeito dessa afoita jogada, o gm Mikhail Gurévich declara: "Se tívesse o assessor dc Kramnik cm Novgorod, ter-lhe-ia sussurrado:- Não faça isto! É uma provocação!" Em seguida, Gurevich aduz: "Como já fui da equipe de analistas de Kaspárov, sei que ele jamais faz sacrifício de peão a troco de nada – principalmente na abertura – fase na qual seus sacrifícios são seriamente preparados".
Em lugar dessa temerária captura, merecia ter sido tentado 19 ... De5!? e se 20 Dd6 Cf5 21 Dxe5 fxe5 22 g4 Cg7 23 Td7 Ce6 24 Tfd1 Cf4, com razoável contra-ataque.

20 Dh6 De6 21 Cd4 Db6!
Uma posição aguda e imprevisível: de um lado, as Pretas têm um peão a mais; do outro, para compensar a desvantagem material, as Brancas exercem uma forte pressão na ala do Rei.

22 Th3
Durante a partida, Kaspárov não cogitou sobre outra maneira de conduzir a ofensiva. Entretanto, em estudo doméstico, descobriu que 22 g4 abriria um fascinante leque de opções, a saber: 22 g4 Rh8 23 Cf5 Cxf5 24 gxf5 e, agora, ele aponta as seguintes alternativas: a) 24 ... b4? 25 Td7! Ba8 (se 25 ... bxc3? 26 Txb7! era decisivo) 26 Tg1 Tg8 27 Txf7! Txg1 + 28 Bd1 Txd1 + 29 Rxd1 19Dd8+ 30 Rc1 e as Brancas venceriam; b) 24 ... Tbd8? 25 Td7!! Bc8 26 Bh5!! Bxd7 27 Bg6! fxg6 28 fxg6 Tf7 29 gxf7 Dd6 30 Td1 De7 31 Txd7!, com triunfo das Brancas.
Contudo, ao tomar conhecimento dessas análises, Kramnik examinou o assunto e mostrou uma solução simples e eficaz: depois de 22 g4 Rh8 23 Cf5 Cxf5 24 gxf5 Tfd8!, não encontrou nenhuma continuação decisiva para as Brancas.

22 ... Rh8 23 Bg4 Tg8 Ce6!?
Qual das duas peças menores sacrificar em c6: o Bispo ou o Cavalo? .-. Essa dúvida ocorreu a Kaspárov e, a princípio, ele ficou inclinado a entregar o B, por causa das seguintes alternativas: 24 Be6 fxe6 25 Dxf6+ Tg7 26 Tg3 Cg6 27 Cxe6 Tg8 28 h5 ou então 24 Be6 Tg6! 25 Df4 Bd5!? 26 Bxd5 Cxd5 27 Dxe4, com fácil triunfo em ambos os casos. Todavia, nessa última seqüência, ele verificou que, após 24 Be6 Tg6! 25 Df4 fxe6! 26 Dxb8+ Tg8 27 Dh2 e5 28 Ce2 Dxf2 29 g3, as Brancas teriam de pensar em igualdade.

24 ... Tg6
Único. Era um desastre aceitar qualquer uma das peças oferecidas: a) 24 ... Txg4? 25 Cg5!! Txg5 26 hxg5 Rg8 27 gxf6 e ganham; b) 24 ... fxe6 25 Dxf6+ Tg7 26 h5 Cg8 27 De5 Te8 28 Td7 Te7 29 Txe7 Cxe7 30 h6 e ganham.

25 Df4
A partida atingiu o clímax e ainda não está definida!

25 ... Te8?
Extremamente premido pelo relógio, Kramnik fez uma jogada instintiva e comprometeu de modo irremediável sua posição. Com dois minutos apenas para fazer 16 lances, ele não teve condições de avaliar as conseqüências da continuação 25 ... Bd5!
Em análises divulgadas na revista "Ncw In Chess " (n. 6-94), Kaspárov esclarece que, neste caso, após 25 ... Bd5! 26 Bh5 Bxe6 27 Bxg6 hxg6 28 Dxf6+ Rg8 29 Dxe7 Bxh3 30 gxh3 Dxf2 31 Dxe4, as Brancas se salvariam de forma trivial. Em que pese tão abalizado pronunciamento, a questão não é tão simples como parece e, no número seguinte dessa publicação holandesa (n. 7-94), Timman indaga: "Na seqüência apontada por Kaspárov, se as Pretas continuassem com 27 ... Cxg6 - em lugar de 27 ... hxg6 - o que sucederia?"
Para reforçar esse ponto de vista, Timman cita que, após 28 Dxf6+ Rg8, as Brancas teriam duas possibilidades: a) 29 h5 Bxh3 30 Td6 Dc5! e as Pretas venceriam, pois 31 h6 seria contestado com 31 ... De5; b) 29 Tg3 b4 30 cxb4 (se 30 c4 Dc5 31 b3 Da5!) 30 ... Dxb4 31 h5 Dc5+, seguido de 32 ... Dxh5, com boas perspectivas de vitória para as Pretas.

26 Td6 Cd5!
Mesmo acossado pelo tempo, o talentoso Kramnik teve um lampejo e encontrou um interessante recurso defensivo.

27 h5!!
Além de anular o chiste tático de Kramnik, esse avanço inicia um brilhante arremate que ressalta as excepcionais qualidades combinatórias de Kaspárov!

27 ... Cxf4 28 hxg6! Dxd6
Quanto à alternativa 28 ... Txe6, teria ensejado 29 Txh7+ Rg8 30 gxf7+ Rf8 (se 30 ... Rxh7 31 Txb6 seria decisivo) 31 Th8+ Rxf7 32 Bxe6+ Cxe6 33 Txb6 e ganham.

29 Txh7+ Rg8 30 gxf7+! Rxh7 31 fxe8=D Cxe6 32 Bf5+ Rg7 33 Dg6+ Rf8 34 Dxf6+ Re8 35 Bxe6 Df8??
Com a seta prestes a cair, Kramnik comete um grave erro. Seu destino, porém, já estava selado. Um desenlace plausível teria sido: 35 ... e3 36 fxe3 Bxg2 37 Bf7+ Rd7 38 Be8+ Rc7 39 Dg7+ Rd8 40 Dxg2 Rxe8 41 De4+!, forçando a troca das Damas e, conseqüentemente, atingindo um final de peões, com um ganho fácil para as Brancas.

36 Bd7+ Abandonam

Ronald Câmara

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